23 de junho de 2008

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Aí, na total escuridão do quarto, abriu o roupeiro grande e passou os dedos por texturas de tecidos dependurados... cada uma, na sua ora àspera ora macia singularidade, carregava memórias do fundo... e cheiros.

"Este foi contigo a passear, com este gostavas de me ver e com este te beijei", mas é uma particular que lhe chama a atenção e, enrolando-lhe as mangas em torno do pescoço, encostando o carapuço no ombro, desliza pelo soalho da divisão escura, avançando pelas trevas numa dança com um corpo que já lá não está.

...também o cheiro já lá não está.

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19 de junho de 2008

above and beyond architecture

mirror's edge

Numa dessas manhãs inconsequentes acordei num telhado, sobre Lisboa, e aí chorei perante a magnitude da alvorada.

Que a instabilidade dessas acrobacias me sossegue o infatigável torpor da segurança térrea! E, lá do alto, estrelas cadentes rosa sobre o azul iluminado da manhã...

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1 de junho de 2008

ceifeiros cósmicos

O Deserto era vasto e eu carreguei-te ao longo da sua penúltima maior extensão. Havíamos percorrido direcções opostas, caminhado dimensões subjectivas antes de nos cruzarmos... estavas cansada e eu também, mas carreguei-te, sem hesitar, às cavalitas pelas dunas brancas, afundando-me com o peso da tua pessoa, afundando-me na areia que o teu corpo recusava tocar. Um sentido, eu e tu, ou chegaríamos os dois, ou não chegaria nenhum.
Mas quando as pernas fraquejaram, quando julguei não o conseguir mais, desceste, do alto daquilo que te fora oferecido, e caminhaste – “adeus”. Ali fiquei, vendo-te renascida, restabelecida como se acordada pela manhã, caminhando sem olhar para trás, uma parasita procurando um novo hospedeiro.

A noite desceu também sobre o deserto, iluminada pelos astros, envolvente na macieza gelada das areias de um branco azul, contrastando com o dia, durando dias, nestas coordenadas onde vicissitudes se envolvem num fuso horário estranho.

Aqui, materializam-se criaturas nocturnas de uma base luminosa de fundo celeste, descem verticalmente em finas linhas de luz, tocando o limite e explodindo do fundo desse manto, projectando areias diluídas em pó de estrelas - são ceifeiros cósmicos, necrófagos dos sonhos destruídos, digerindo-os com flashes luminosos, deslizando por sobre os areais em busca de mais.
Um deles aproxima-se. Tenho um medo que cedo se dissipa, porque a criatura parece apontar numa direcção, como que me expulsando do festim nocturno e dizendo:
“Por ali. O caminho faz-se caminhando, e estás aqui a mais; caso encontres alguém, ensina-a antes a caminhar.”

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